Desembargadores comprados

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domingo, 4 de fevereiro de 2007

Quem canta os males espanta?

A pergunta é antiga, e a resposta duvidosa. Será que quem canta os males espanta?

Pensando nisso resolvi compôr uma música que falasse do atual momento em que vivemos. Não estamos mais em uma ditadura. Estamos em pleno exercício da democracia, e a violência militar não incomoda mais.

Para tanto, resolvi que seria necessário buscar os arquivos das músicas lançadas na época da ditadura, para entender o que pensavam os poetas. Achei muitas e as dúvidas começaram a brotejar na minha cabeça.

Escrevi algumas linhas para retratar a triste situação que pais de vítimas da violência do crime estatizado (crime estatizado é aquele que obtém suporte irrestrito do estado) sentem frequentemente junto as lembranças de seus entes queridos. Depois de muitas palavras escritas, resolvi apagá-las. É que lendo a letra de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias (Geraldo Vandré para os militares) , percebi que ali já continha o que estava querendo dizer:

Nas escolas, nas ruas, campos, construções,
Somos todos soldados, armados ou não,
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais, braços dados ou não,
Os amores na mente, as flores no chão,
A certeza na frente, a história na mão,
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Aprendendo e ensinando uma nova lição,
Vem, vamos embora que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Quem sabe pudéssemos retomar esta canção como bandeira de luta contra a impunidade, afinal "Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer", e o trecho que nos remete aos nossos familiares diz "Os amores na mente, as flores no chão" são perfeitos não?

Mas ainda faltava algo que pudesse revelar a forma como estamos sendo calados ou sequer ouvidos. Na época da ditadura diziam os meus pais que não podíamos falar nada. Que só num regime democrático teríamos voz. E eles tinham razão. Porém, não sabiam que na democracia, você pode falar tudo o que quiser, mas jamais lhe darão ouvidos. Escrevi mais uma dúzia de palavras e novamente as apaguei. Foi então que li um trecho da música de Chico Buarque de Holanda.

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Vivemos num país onde o povo é ignorado e aqueles que deveriam acabar com a criminalidade estão preenchendo os inquéritos que estão sendo arquivados, como se nada tivesse acontecido. A esperança de cada um de nós que tivemos entes queridos assassinados, floresce a cada dia numa ilusão descomprometida porém aguçada de que daremos o troco. Ao colocar isto em versos, acabei esbarrando em outra letra, também cantada por Chico Buarque:

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

É nessa violência sem ter a quem recorrer que lutamos noite e dia. Aqueles que cantavam estas músicas hoje ocupam os gabinetes da antiga ditadura. Estão surdos, ricos e comprometidos com o interesse de poder ter poder. Já não temos mais a quem chamar. As vezes penso que entre a polícia e o ladrão, devemos optar pelo segundo, pois o primeiro já não se importa mais. Ora, de novo já existia música para isso:

Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
Pensando bem, melhor desistir da música. Vou usar as letras antigas que falavam de uma violência praticada por aqueles que estavam no poder. Vou usar as letras escritas para uma época tão sombria que perpetuou na democracia, disfarçada de crime organizado. No passado o inimigo usava farda, e hoje usa terno e gravata. Os que cantavam estas letras na época da ditadura, subiram ao poder e esqueceram os refrões. Lembram-se apenas dos conchavos, dos acordos, das propinas, das omissões, das vigarices.

Hoje, estas letras não fazem mais sentido - para eles. Com a democracia, saiu de cena a violência militar e entrou a violência da omissão, que é muito pior. A falta de compromisso com a justiça. A indiferença com a vida alheia. A história se repete, e talvez seja a hora de cantarmos bem alto novamente as letras que eles já não se lembram mais.

CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO
SOMOS TODOS IGUAIS BRAÇOS DADOS OU NÃO
NAS ESCOLAS, NAS RUAS, CAMPOS, CONSTRUÇÕES,
CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO.


Na época da ditadura, o general não admitia que lhe fizessem críticas. Hoje, o nosso general não se importa mais com elas. O que importa é o crescimento indiscriminado de seu patrimônio e de seus filhos Ronaldinhos, a dupla nacionalidade da esposa, os gastos exagerados em cartões de créditos pagos por nós e o poder pelo poder. Que morram os filhos dos brasileiros, pois os filhos do poder possuem segurança particular, que procriem os bandidos pois as cadeias já estão sendo esvaziadas, que se dane a justiça. Viva o habeas corpus que permite mentir e continuar ileso.

Reze ao sair de casa e agradeça à deus por voltar. Se mais algum de nós for morto, só nos resta mesmo enterrar. Quem canta os males espanta! Então é hora de cantar!

Um comentário:

Dila Pereira disse...

"Sonhar mais um sonho impossível,
lutar quando é fácil ceder,
vencer o inimigo invencível,
negar, quando a regra é vender.

Sofrer a tortura implacável,
romper a incabível prisão,
voar num limite improvável,
tocar o inacessível chão".
(Chico Buarque)

Paulo,
Somente quando abrimos nossos olhos ou sentimos na própria carne, é que podemos entender...

Muitos já escreveram e cantaram, é verdade. E o primeiro passo da nossa missão hoje, é ouvir. E não esquecer, tampouco desistir.