Todos os anos, uma avalanche de argumentos são lançados para angariar doadores de órgãos. O mais comum é usar a frase "Doar é um ato de amor". Ou ainda "Doe vida". Este último ironicamente é destinado à família do doador cadáver. Acho que eles nunca pensaram o impacto desta frase para quem está perdendo, por exemplo, um filho.
O transplante de órgãos tem provocado situações conflitantes e incompreensíveis que muitas vezes – senão todas – passam despercebidas aos olhares daqueles que, por sorte, não tiveram que enfrentar nenhum dos dois lados.
O que quero dizer?
Imaginemos a seguinte situação:
De um lado, temos um paciente que precisa de um fígado com urgência para viver e que possui uma expectativa de 24 horas de vida. Os médicos incentivam a família a ter esperança, buscar forças de onde nunca imaginaram ter e a lutar pela vida, pois ela é possível. Em torno deste paciente há uma equipe médica de plantão 24 horas e enfermeiras prestativas e atentas aos sinais vitais do paciente, torcendo para que um órgão venha salvar-lhe a vida.
Do outro lado, há um paciente em coma provavelmente vítima de um traumatismo craniano com uma equipe médica reduzida ao seu lado uma vez que, consideram os esforços inúteis para salvá-lo. Seus sinais vitais são controlados por um aparelho, que certamente apitará se o pior acontecer, e medicamentos para a sua hidratação começam a ser utilizados, visando à doação de órgãos.
Fora da UTI há uma fila de pacientes esperando que ele morra para poderem ocupar a sua vaga. Os médicos incentivam a família do comatoso a abandonar as esperanças e desistir da luta pela vida, embora na história da medicina existam muitos casos de comatosos que conseguiram se recuperar.
Uma equipe de “voluntários” se apresenta para falar à família sobre a morte e a possibilidade de salvar outras pessoas. Pede tudo a ela num momento em que não lhe resta mais nada.
Entre a necessidade de um sobreviver e outro não resistir, está uma farta quantia em dinheiro que o SUS paga por cirurgia de implante de um fígado, uma ofensa se comparado com o que paga ao médico que cuida do comatoso.
A este quadro, os médicos transplantistas chamam de “amor”.
Um amor estranho que sequer é correspondido, pois embora não exista nenhuma lei que proíba a família do receptor conhecer a família do doador e vice-versa, os médicos desaconselham este encontro. Após findar todo o processo, a atenção é desviada para o transplantado que agora precisa de cuidados médicos especiais no combate à rejeição. A família do doador é definitivamente esquecida por não ser mais útil e, ao voltar para a casa – sem qualquer apoio psicológico - encontra um enorme vazio.
Este é o momento em que começam a questionar-se se realmente fizeram tudo o que estava ao seu alcance, dentro e fora da medicina pelo seu ente querido. Porém, é tarde demais.
Lindo não acha? Para os transplantistas pelo menos.
O mais novo argumento que vem sendo distribuído em blogs e em programas de televisão é:
"A chance de ir para uma fila de transplante, é muito maior do que a chance de se tornar um doador"
Uma espécie de cultura do medo. Se você não doar, poderá ficar doente! O argumento é vazio, mas soa como uma bomba. A chance de adquirir um câncer, é muito maior do que a chance de precisar de um transplante. A possibilidade da morte, existe para qualquer um que esteja vivo, e em qualquer circunstância. Uma pessoa pode passar anos na fila e outra que não tinha qualquer problema de saúde ser atingido por caminhão.
São situações em que todos corremos riscos. Leia esta reportagem se desejar clicando aqui. Ela fala dos valores gastos pelo SUS no estado de São Paulo com os acidentes de trânsito. Este trecho é bastante interessante:
O número de mortes registradas pela Secretaria de Estado de Saúde chegou a 8.698, o que dá uma média de uma morte por hora. Mais da metade das vítimas (52%) eram pedestres com mais de 60 anos. As informações foram divulgadas ontem no seminário internacional de segurança no trânsito organizado pelo Conselho Estadual para a Diminuição de Acidentes de Trânsito e Transporte (Cedatt).
Entenderam? Uma média de uma morte por hora só no estado de São Paulo. 52% eram idosos que escaparam da fila de transplante e morreram por uma fatalidade. Muito bem, agora responda. Quantas pessoas morrem na fila de transplante por hora? A estatística em São Paulo não existe, e nem existirá. Seria ultrajante divulgar estes números e compará-los por exemplo com o número de mortes por câncer, ou com o número de mortos pela violência com o uso de arma de fogo.
Quantas propagandas você já viu o SUS realizar para que os acidentes de trânsito diminuam ou que a violência termine? Mas a responsabilidade pelas pessoas que estão na fila, eles definiram, é sua. Se você não doar, elas morrerão não por causa da doença que têm, mas porque você não doou seus órgãos. E só para constar, a doação dos seus órgãos hoje, depende basicamente da sua morte, se é que você ainda não pensou nisso.
Incentivando você a se tornar doador, não dá a sensação que querem que você morra?
Não importa o que aconteça com você. Tem que ser doador. Precisa salvar outras vidas. Precisa, em outras palavras, morrer.
Fala com a sua família que deseja ser doador. Manifeste-se por escrito. Preencha o formulário. Deixe um lembrete na mesa da sala. Plastifique sua carteirinha. Conte para todo mundo que você é doador.
Ou se preferir, faça exames preventivos para que não seja levado para a fila como a maioria dos pacientes estão sendo levados. Por falta de prevenção. Antes de falar para alguém que você é doador, diga a esta pessoa que ela deve se preocupar com a saúde e evitar algumas coisas que podem levá-la para a fila.
Faça o trabalho limpo que os transplantistas sujos não querem fazer.
Morrer de acidente é uma fatalidade. Não dá para prever. Ir para a fila de transplante, na grande maioria dos casos, é ignorância, no sentido real da palavra. Há meios de evitar. Você pode viver muito se fizer exames preventivos. Mas se preferir, entregue-se a campanha transplantista e use seu tempo dizendo para o mundo que o seu corpo não te pertence.
Eu já cansei de receber intimidações por e-mail: "Você ainda vai precisar de um transplante". Talvez precise. Talvez tenha câncer. Talvez morra em um acidente de carro. Talvez morra com um tiro na testa. Todas as possibilidades existem. Mas doar órgãos não vai me salvar de nenhuma delas.
O transplante ainda é a maior fonte de renda da medicina moderna. É a forma mais simples de ganhar dinheiro sem ter a responsabilidade de que a intervenção dê certo. Se der ótimo. Se não der, problema seu.
Se estão tão preocupados em salvar vidas, deveriam tentar poupar os 52% dos idosos que morreram com saúde atropelados por um caminhão (foto). Mas isso ninguém se importa. O importante é que você precisa ser doador.
2 comentários:
Meu deus! Eu nunca tinha pensado nisso assim. É macabro mas faz todo sentido. Minha mãe morreu de cirrose aguardando um figado. E achava injusto ela ter destruido o dela por causa do alcolismo e ainda termos que torcer para alguem cheio de vida e saude ter de morrer para que ela pudesse viver. Eu sei que soa meio cruel, mas mesmo sabendo da doença que é o alcolismo ela fez a escolha dela ao virar o primeiro copo, enquanto um pobre inocente morreu de acidente para que ela tivesse a oportunidade de uma segunda chance.
Otimo que voce entendeu!!
Até porque, nem todo doador morre de acidente. Alias, a maioria é assassinada, sem chance de defesa.
Seria melhor mesmo tratar o alcolismo do que rezar para que alguem morresse!
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