O texto abaixo é o ponto de vista de um brasileiro que esteve na fila de espera por um coração. A forma lúcida com que trata o assunto precisa ser compartilhado. Leiam com atenção pois é muito importante para todos nós. Ele pede para ser identificado como um "provável receptor anarquista". No momento certo ele pretende se identificar. O blog está aberto para ele e para qualquer pessoa que esteja a espera de um órgão e queira publicar o que pensa.
Transplantando Humanismo
Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero?; (2) devo?; (3) posso? Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve.Mário Sérgio Cortella
Somente agora tomei consciência da podridão do tráfico de pessoas e de órgãos. Questionava a forma mercantilista como a medicina é feita e, o conhecimento dessa triste realidade revelou sua face ainda mais cruel. Lembrei de um livro que li. “Almas Mortas”, de Nicolai Gogol. Nele Tchítchicov é um burocrata desonesto que descobre um grande negócio - travestido de “honesto e bom”. No regime feudal russo, ele comprava por ninharia, direitos de propriedade sobre “camponeses mortos” de senhores feudais. Convencia-os a livrar-se do fardo já que, pela Lei, pagavam impostos pelo número de almas. E somente nos recenseamentos ou na “venda de pessoas” é que o número de almas era alterado. Vendia por altas somas as “almas mortas” em frentes de colonização - pois nelas, ao contrário, o Estado pagava os proprietários segundo o bom número de trabalhadores.
Perto de atos escabrosos de médicos atuais o comércio de almas mortas por Tchítchicov é um ato de santidade. Quando sequer a forma de diagnosticar a morte é certa e quando, no contexto da doença o interesse maior é o uso de drogas para preservar órgãos para “doação” (ou venda escondida), perde-se qualquer condição moral não apenas dos médicos, mas da humanidade.
Estes médicos jogam no lixo o juramento de Hipócrates no trecho “exercerei a minha arte com consciência e dignidade”. Fazem valer a parte que diz: “os meus colegas serão meus irmãos”, ao esconder crimes por corporativismo
E, para piorar existe propaganda e convencimento da família que leva, sim, a decisões emocionais - e não racionais. Qual é a segurança de que realmente a morte ocorreu já que até isso é incerto? E, como fica essa questão do ponto de vista dos doadores? Existirá medo de ficar em UTI de hospitais? E do ponto de vista dos receptores?
A primeira dúvida é a credibilidade da “lista única”. Se existe privilégios a “compradores”, logo, existe manipulação da lista única que prejudica pacientes pobres ou sem influência nos partidos do poder.
Para evitar isso, só existe uma forma: transparência total da lista na rede internet e controle social absoluto, sendo que cada caso será avaliado e se os critérios que colocam pessoas na frente são cumpridos por todas as instituições.
Uma forma de controle social seria a auditoria periódica e os pagamentos de procedimentos, via SUS ou não.
Outra forma seria o fim da confidencialidade. É um princípio jurídico da legislação de transplantes pensado para impedir o comércio de órgãos, mas que, na prática, favorece justamente o contrário. Pode ter certeza de que nenhum candidato a receptor se oporia a ter “informação aberta”. A ele interessa isso tanto para os doadores e é a forma de saber da honestidade de todo um processo. A confidencialidade na verdade apenas esconde e protege a máfia. E não é ética.
A segunda questão é uma percepção prática. A limitação da medicina a uma visão de transplantes como única solução em todos os casos.
O tão falado “avanço da medicina” fica comprometido em duas frentes pelos procedimentos mafiosos. Quais as pesquisas para, por exemplo, possibilitar o aproveitamento de órgãos mais tempo após a morte mesmo - garantindo-se a família de que houve realmente a morte antes de decisão tão dura?
Certamente avanços nesse quesito não interessam a máfia, pois iriam certamente gerar “excesso de produto no mercado”, reduzindo preços.
E, ao focar em protocolos e transplante, será que há pesquisas e recursos suficientes para isso, já que não interessa pois dá lucro a poderosos de branco e políticos?
Outro atraso visível é o desenvolvimento de equipamentos de precisão, que demonstrem que realmente o pior – a morte – ocorreu. Deve eliminar-se qualquer hipótese de coma profundo ou outra condição e não é possível que em pleno século XXI ainda haja atraso em certificar-se da morte. As escolas de engenharia médica têm pesquisas nesse sentido para desenvolver equipamentos e procedimentos? Talvez não, pois também não interessaria a máfia, pois limitaria a captação de peças e nem ao Estado, pois estes pacientes precisariam ser assistidos para sua recuperação.
Por fim, do ponto de vista prático e ético do doador e da família o tema é muito tratado. Mas do ponto de vista dos receptores, qual seria as percepções?
Antes de voltar a esse ponto, cabe informar sobre quem escreve. Coloco aqui o tema por experiência própria. Tenho 45 anos, separado, pai, e a 2 anos diagnóstico de Miocardiopatia Dilatada Idiopática com Cardiomegalia Global Gigante. Após muitas opiniões divergentes concluíram que meu caso não é cirúrgico e a única possibilidade de seria o transplante cardíaco.
Quem tem esse tipo de problema - e chegou como eu, na classe funcional III (classificação de insuficiência cardíaca do NYHA que varia de 1 a 4), afogando no ar sem conseguir respirar direito todo o tempo com piora à noite, tentando dormir sentado e ofegante como peixe fora d’água, com pernas inchadas, acúmulo de líquido no pulmão e no fígado, vê a informação médica do transplante como a tábua de salvação.
Vemos as propagandas bonitas e embarcamos, e muitos não têm a oportunidade de conhecer o outro lado da questão.
Ao ter o prognóstico, senti-me igual o homem de lata de O Mágico de Oz, em busca de um coração. Cheguei por um tempo a ver os cirurgiões como mágicos.
Ainda assim fui pesquisar por conta própria alternativas. E tive mais apoio e melhora a partir de amiga nutricionista cujas novidades não divulgadas melhoraram minha condição. Conclui que nem sempre a “verdade” dos médicos é única e absoluta e estão tão habituados a transplante que esquecem outras opções de cura ou convivência com a doença. Por quê?
Após muitas mudanças de medicamentos e, somado a isso (realmente não há como não usar os medicamentos convencionais), uso adicional de procedimentos alternativos (em especial suplementos alimentares não aceitos no Brasil para humanos - mas usados normalmente para animais com a mesma doença – e prescritos no exterior, regimes e outros que prefiro não revelar no momento, pois dariam prisão a quem aplica em mim), retornei a classe funcional I.
Estou muito bem. Saí da fila. A fração de ejeção, outro indicador, evoluiu de 31 para 60, quase normal. Isso porque “desobedeci” alguns médicos indo além dos protocolos.
A nutricionista levantou a hipótese – existente na literatura – da causa do meu coração gigantesco ser, além da hipertensão e disfunção mitral, algo similar a doenças auto-imunes, sendo necessário modular o sistema de defesa do organismo (como ocorre em doença celíaca, lúpus, etc) e ao mesmo tempo reforçar o músculo cardíaco para evitar fibrose.
Adotei um regime alimentar diferenciado, suplementos alimentares (carnitina, coenzimas, ribose, selênio, magnésio, etc) e modulação da imunidade. Isso, somado aos medicamentos convencionais, trouxe em 6 meses resultados que não tive em 1,5 anos anteriores.
A conclusão disso é que a medicina tem “protocolos”, mas nem sempre compatíveis com as necessidades das pessoas. E burocratizam a aprovação de novos medicamentos e complicam a busca de alternativas.
É como se o transplante, realmente, fosse a única “solução”, e, por isso, deixassem de evoluir para outras. Como se os pajés deixassem de buscar novas curas e experiências - já que tem a seu dispor um “protocolo rígido” e um “mercado de peças de reposição” bastante interessante financeiramente para muitos deles.
Na questão do transplante há que se ter um entendimento político. Órgãos humanos não podem ser transformados em mercadoria - como ocorre em qualquer “sistema”, comunismo, socialismo ou capitalismo.
Deve prevalecer o humanismo, e a “condição humana”, bem suprema para a realização da vida. É o que difere homens e não homens. Tema estudado pela filósofa Hannah Arendt que buscava compreender a desumanização do nazismo, a banalização e aceitação do mal como bom. E é que faz a sociedade atual não retornar ao passado recente onde raças diferentes não eram conhecidas como portadoras de almas. Logo, eram não humanos e meras mercadorias para escravidão e uso.
Sob o viés político, há um sistema pior ainda que todos, e que impera no mundo subdesenvolvido inclusive no Brasil. O “capitalismo de compadres”.
Nele predomina a famigerada Lei de Gérson, onde os fins justificam os meios. Nesse mundo ser “amigo de poderosos” e “ter dinheiro” permitem passar por cima de tudo. Impera o clientelismo político e a troca de favores por votos.
Isso exige novos tempos de consciência de cidadania, além de votos e além de partidos. Governança hoje exige “Reforma Gerencial”, voltada ao humanismo e ao bem estar das pessoas. Nenhum indivíduo pode ser mais importante do que outros, mesmo que tenha muito dinheiro, ou seja, amigo de políticos.
Não acho que o capitalismo financeiro solto seja o caminho. Promove a mercantilização. Tudo é transformado em mercadoria. Pessoas viram coisas. E até órgãos humanos produtos. E onde o Estado é controlado por políticos bandidos, mancomunados com setores privados igualmente bandidos, aproveita-se para “vender e corromper”. Por isso, qualquer luta política não passa por partidos ou “ismos”. Passa por “Reformar o Estado” nos tempos de sociedade conectada, com abertura total de informações, de transparência e controle social absolutos. Nada mais escondido. Toda a informação compartilhada. Tanto Estado como sócios privados observados e auditados pelas pessoas que precisam de bons serviços, eficiência de gestão e liberdade para empreender, trabalhar e viver.
O fato é que órgãos humanos viraram peças e produtos. Isso não pode ser aceito nunca e não o é. Nem por doadores e nem por receptores.
Após essa visão política do mundo e relato de minha condição médica, que ajudam a entender meu ponto de vista, retomamos o tema transplante com a pergunta:
Do ponto dos receptores, quais seriam as implicações práticas e éticas?
Essa questão é tão ampla que daria um livro, mas a resposta está contida na resposta a pergunta: Você é mais importante que outra pessoa? E a resposta a ela tem a ver com o único mandamento deixado pelo Cristo: ”Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Marcos 12:30).
Obviamente ninguém quer morrer. Todos querem viver. Temos isso como instinto básico. E, quando nos sentimos sem ritmo cardíaco algum todo o tempo e com o coração batendo forte, descompassado e um chamado pulso VA (diferente e irregular em várias partes do corpo) com carótida saltitante – inclusive agora escrevendo isso e é simplesmente horrível. Ou pior, quando sair dessa fase boa e daqui a alguns meses - ou com sorte anos - retornar a ter dor de angina, falta de ar, inchaço no corpo todo, cansado para levantar-se e andar 10 metros até o banheiro, etc, obviamente queremos a cura. Mas que seja dentro do princípio do amor ao próximo.
Conheço muitos na fila, que, se desconfiarem de que os órgãos que esperam podem ter origem duvidosa, rejeitariam o transplante e prefeririam morrer. E, curiosamente os mais simples, mais humildes, são as que pensam assim. Conversei com vários sobre o tema e todos não têm postura egoísta, identificada nos ricos acostumados a dividir a sociedade entre pessoas com dinheiro e coisas. Ou inconscientes, egoístas, encharcados de banalidade do mal pelo monstro do clientelismo político, onde, pedir a um político para “ajudar’ pessoa que precisa (como vi em um dos relatos) é tão nojento que demonstra um egoísmo absoluto e maldade pura, sem medir conseqüências e se julgando superior a outros humanos – como se achavam os nazistas.
Se um dia eu entrar novamente na fila agarrar-me-ei a vida. Mas desde que não tenha significado o assassinato de outra pessoa.
Há necessidade de garantia de que o doador realmente faleceu e que a família, ciente disso, quis fazer o bem.
E, a única forma que vai garantir isso é, justamente, o fim do sigilo e a transparência e controle social na lista. Qual é o sentido do sigilo ? Para que o sigilo? Garantir que não haja comércio? Mas é justamente o contrário, pois a máfia aproveita-se disso.
Caso no futuro eu ainda precise de um coração (estou otimista e acredito que tenho encontrado caminhos próprios de convivência com a doença) e aconteça de ser transplantado, não teria problema algum em conhecer a família do doador, assegurando que foi tudo dentro de valores humanos, houve espontaneidade e, sobretudo a morte mesmo - e não assassinato velado.
Prefiro 1000 vezes morrer por falta de coração do que ser cúmplice, ainda que indiretamente, de qualquer maldade humana.
Como muitos que conheço que são agricultores, operários, donas de casa, pessoas simples, com doenças originadas por agrotóxicos, bebida, alimentos envenenados que temos nos nossos supermercados, não temos dinheiro para pagar por “peças”. Logo, é mais fácil morrermos mesmo na fila do que ser cúmplice indireto de assassinato.
Outra questão interessante: muitos receptores são também doadores. E o são. Os cardiopatas que conheço estão sujeitos a parada cardiorrespiratória nas UTI´s ou leitos onde aguardam órgão. Eu mesmo e tomo anticoagulantes até para tentar evitar isso! E, quando não acontecer são doadores dos demais órgãos. Qual é a segurança de que não serão eutanasiados por um sistema falho e voltado a lucros? Não é o momento de rever conceitos e avançar na tecnologia e forma de diagnóstico da morte mesmo e voltar-se a outras formas de cura além de transplantes?
Vi no Grupo comentários criminalizando transplantes. Também não é sempre assim. Deve mudar regras, eliminar a máfia e punir bandidos de branco. Mas pode, sim, ser uma alternativa até para quem é contra hoje. Como aconteceu comigo de modo repentino pode acontecer a qualquer um essa “necessidade”. Só não pode ser acompanhada de morte.
Como relatei a medicina não deve empacar na busca de cura de doenças graves por ter protocolos padrão voltados a transplante como panacéia para todos os males e esse é o ponto chave nunca considerado.
Há pontos controversos para reflexão e estudos. É tema novo para mim. Estou me debruçando sobre legislação, dados estatísticos e médicos.
Alguns paradigmas precisam ser quebrados e vão exigir outros pontos de vista.
É preciso construir uma verdadeira ética da vida e não da morte. Uma ética da vida que não seja hipócrita e disfarçada como acontece nos transplantes (igualzinho aos fatos do romance literário que citei no início e onde mercadores de “almas mortas” se dizem santos e fazendo algo bom). Nunca revelam intenções de lucro em cima de vidas humanas. Médicos assim são “quase gente” e que se dizem “santos”, mas são como demônios achando-se Deus.
Para quem um dia poderá será transplantado, é importante a paz de espírito. E essa paz só anda junto com a honestidade, humanismo e ética.